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quinta-feira, 28 de abril de 2011

Ponto e Contraponto.

 Recebemos esse e-mail e a equipe achou importante compartilhar com todos que trabalham e defendem uma Educação Infantil de qualidade no Brasil.


Comentários à Veja – Gustavo Ioschpe – 13/03/2011*

Sonia Kramer


1.  Gustavo Ioschpe desconhece a natureza do trabalho feito com as crianças na educação infantil (algo como o pastor e a ovelha etc). Tudo se passa na visão falaciosa dele como se nas turmas de educação infantil as crianças ficassem anos sentadas – no chão, em cadeiras ou em berços – esperando o momento de serem alfabetizadas, momento que seria quem sabe arbitrariamente definido pelo estado, município ou escola nas políticas (a idade de início do ensino fundamental, historicamente é diferente nos diferentes países).
             
Desde os anos 70 este tema é central: havia, entre gestores de políticas, pesquisadores etc, (1) aqueles que defendiam a pré-escola para salvar a escola, porque ela supostamente preveniria por antecipação problemas do ensino fundamental; (2) aqueles que rechaçavam qualquer expansão (com argumentos semelhantes ao do articulista) e (3) poucos – entre os quais eu me incluía e incluo – que negavam o impacto de qualquer tipo de educação infantil e já apontavam a importância da qualidade do que é feito na educação infantil E no ensino fundamental. (este é o tema da minha dissertação de mestrado que entreguei dia 23/12/1980)
            - a decorrência deste (3), no que diz respeito aos investimentos é o fato de que além de decidir investir ou não na educação infantil, é preciso definir em que aspectos, fatores e condições. Mas esta é outra discussão.

2. G. I. não sabe que educação infantil e ensino fundamental devem estar necessariamente articulados. A educação da criança de 0 a 10 anos (incluindo portanto os primeiros anos do ensijno fundamental é responsabilidade da esfera municipal e pauta de discussão dos últimos 10 anos no Brasil e em várias partes do mundo. Ioschpe quase nos engana ao dizer que “pode ser ruinoso se expandir a pré-escola significar deixar de lado as lutas pela melhoria do ensino fundamental”, argumento que se perde no seu texto por ele não ter noção das implicações do que está dizendo.

3. G.I. ignora o que é alfabetização. Pelo seu texto, ele parece supor que basta sentar crianças em cadeiras num determinado dia e as alfabetizar. A alfabetização - embora tenha uma dimensão técnica  – muito mais do que uma técnica é a entrada das crianças (ou dos jovens e adultos) na cultura escrita (por alguns chamada de cultura letrada). Qualquer pessoa com um mínimo de formação cultural, literária e humanista pode compreender a diferença que faz para a alfabetização o acesso a livros (no caso da educação infantil, livros de literatura infantil) e a práticas de leitura (atitudes dos adultos diante de livros, modos de ler, costumes e hábitos) que estão longe de ser inatos e que são aprendidos desde muito cedo. Desde os anos 70, pesquisas feitas no Brasil e em vários países no mundo mostram que as crianças aprendem a língua escrita antes de saberem ler, aprendizado cultural que ´´e absolutamente fundamental para a leitura e a escrita.   

Estes pontos me levam à seguinte conclusão: decidir entre investir na educação infantil ou no ensino fundamental (ou na alfabetização!!!) é o mesmo que, diante da necessidade de que a criança tome um copo de leite toda manhã, ficar discutindo se ela deve beber a metade de cima ou a de baixo. Educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental são dois momentos de um mesmo processo; a alfabetização das crianças precede a entrada no ensino fundamental e faz toda a diferença no aprendizado das crianças ter ou não freqüentado a educação infantil, desde que haja qualidade no trabalho da educação infantil e do ensino fundamental, mas isso é óbvio (já que comer repolho estragado pode matar a fome do coelho, mas pode também matar o coelho).
 
4. G.I desconsidera que o Brasil não tem hoje uma restrição de recursos significativa, que o impeça de investir em ambos.

5. A Educação Infantil é tanto mais relevante para as crianças e seu desempenho no ensino fundamental quanto menores são as oportunidades que elas têm de acesso a contextos sociais e culturais formalizados. Refiro-me à educação tal como é entendida pela opção brasileira e assegurada na constituição e em todos os nossos textos legais: educação infantil como espaço de socialização institucional (em creches e pré-escolas) como alternativa de acesso à cultura (livros, brinquedos, arte etc) e à ciência, requisitos para a alfabetização.

 Segue abaixo o texto do jornalista:

Universalização da educação infantil: solução ou armadilha?

 Os ganhos para o país com a eliminação do analfabetismo serão muito maiores do que aqueles oriundos da universalização da pré-escola. Essa é a batalha que temos à nossa frente. Admitir distrações é quase cometer crime de guerra
 Os últimos anos têm visto o florescimento de uma vasta literatura científica, multidisciplinar, que demonstra o incrível poder que os primeiros anos de vida de uma pessoa têm na determinação de uma série de fatores - da saúde à riqueza - de sua idade adulta. À medida que a pesquisa avança, nota-se que a idade para o surgimento de características importantes vai retrocedendo: sabe-se hoje que eventos da vida intrauterina têm impactos que perduram até a morte.

Esse avanço do conhecimento vem embasando uma mudança de políticas públicas, especialmente nos países desenvolvidos, no sentido de intervir cada vez mais cedo, com especial atenção às crianças de famílias mais vulneráveis. O primeiro esforço em muitos países tem sido começar o processo educacional já na pré-escola, atendendo crianças de 4 e 5 anos. O impacto positivo da pré-escola é amparado por literatura científica extensa. Estudos feitos no Brasil demonstram que alunos que cursaram a pré-escola têm desempenho acadêmico melhor do que aqueles que não a cursaram. Essa diferença persiste por todas as séries, e aparece também em exames padronizados como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Alunos que têm melhor desempenho tendem a gostar mais da escola e, portanto, são menos propensos a abandoná-la. Alunos que cursaram a pré-escola têm maior probabilidade de completar o ensino superior. O impacto positivo vai além da vida escolar e se estende à idade adulta. Um estudo feito no Brasil mostra que aqueles que passaram pela pré-escola têm salário 16% mais alto do que alunos que não a cursaram. Estudos americanos demonstram que a frequência à pré-escola aparece associada à diminuição das taxas de criminalidade.

Por todos esses benefícios, vários países, entre eles o Brasil, vêm cursando o caminho da universalização da educação infantil, especialmente na idade da pré-escola - antes dela vem a creche, cujos efeitos educacionais aparentam ser nulos. O Brasil avançou bastante nesse terreno. Aproximadamente 78% das crianças brasileiras estavam na pré-escola em 2009. Usando o critério da Unesco, que permite fazer comparações internacionais, tínhamos 65% de taxa de matrícula, número elevado, comparável ao de vários países líderes em educação.

Há, porém, uma diferença fundamental entre o esforço de universalização da educação infantil no Brasil e nos países desenvolvidos, onde esse movimento se deu depois de satisfeitas todas as necessidades basilares de sua educação escolar. No Brasil ele está sendo usado (e vendido à opinião pública) como a bala mágica para todas as deficiências do sistema educacional, em especial as relacionadas à alfabetização.

A experiência internacional demonstra claramente a falácia desse argumento. Nenhum dos países que deram saltos educacionais importantes nas últimas décadas teve a universalização da pré-escola como conquista anterior a êxitos na alfabetização e no ensino de modo geral. Em 1975, por exemplo, a taxa de matrícula na pré-escola na Finlândia era de 32%, na Noruega, de 13%, na Coreia do Sul, de 3%, e na Inglaterra, de 21%. Mesmo em 1980, quando muitos desses países já começavam a dar importantes sinais da melhoria de sua educação, nenhum deles punha nem metade da população na pré-escola. Na Finlândia, até há pouco o país com o melhor sistema educacional do mundo, a taxa de matrícula na pré-escola ainda em 1990 era de 33%. Vem da China o exemplo mais claro de que a pré-escola é útil, mas não chega a ser condição indispensável de sucesso para o funcionamento do sistema educacional como um todo. Em 2008, a taxa de matrícula de crianças chinesas na pré-escola era de 44%. Um ano depois, a China já liderava mundialmente o exame Pisa, que mede o conhecimento dos jovens aos 15 anos, sem tempo hábil, portanto, para que se verificasse algum benefício da pré-escola nesse fenomenal desempenho.

A expansão da pré-escola vem ganhando força no Brasil também porque os políticos gostam de inaugurar escolas e anunciar a criação de vagas. "Mas, se os efeitos da pré-escola são positivos, que mal há nisso?" O argumento é bom, mas pode ser ruinoso se expandir a pré-escola significar deixar de lado as lutas pela melhoria do ensino fundamental. A realidade mostra que existe esse risco. Em qualquer organização da iniciativa privada, por exemplo, há sempre dezenas de projetos com retorno positivo que podem ser perseguidos, mas as organizações exitosas implementam apenas um número muito pequeno dessas oportunidades. As escolhas precisam ser feitas, por uma questão de estratégia e foco. Nem sempre há tempo e/ou recursos humanos suficientes para fazer tudo - e tudo benfeito. É preciso, então, priorizar aquilo que é mais importante e dá maior retorno. As organizações públicas e educacionais têm as mesmas limitações que qualquer organização humana, mas, no Brasil, acham que podem (e devem) fazer tudo ao mesmo tempo, e que conseguirão fazer tudo bem. É um engano.

Precisamos fugir da armadilha da expansão do ensino para o nível infantil por duas razões. A primeira é conceitual: há mais de dez anos, com a universalização do acesso ao ensino fundamental, nosso problema maior deixou de ser a quantidade (matrículas, vagas ou falta de verbas) para se tornar a qualidade da educação, que se traduz em melhoria da aprendizagem. Mas as reformas que produzem qualidade requerem esforços, brigas com as corporações do ensino, interferência nas universidades, fim do loteamento político de cargos. Enfim, uma série de medidas que são tão importantes para o povo brasileiro quanto desagradáveis para nossos políticos e muitos professores e funcionários escolares incompetentes. Por isso, não conseguimos ainda, como país, fazer essa migração e focar na qualidade. Assim, continuamos aparecendo nas últimas posições de vários indicadores globais de educação.

Já há relativamente pouco que se possa fazer, quantitativamente, pelo ensino fundamental. Se, como sociedade, conseguirmos fazer com que nossos líderes se atenham a esse nível e não escapem das batalhas que importam, teremos verdadeiros e importantes avanços. Se, porém, perdermos o foco e deixarmos que as atenções se voltem para a tenra infância (hoje os de 5 anos, daqui a pouco os de 3...), perderemos mais dez ou quinze anos até finalmente descobrirmos que, ops!, apesar de todos os progressos na pré-escola, nossos alunos continuam chegando à 4ª série sem saber ler nem escrever.
A segunda razão é objetiva. Temos uma enorme e urgente batalha a travar, quase vergonhosa: precisamos alfabetizar 100% de nossas crianças até a 2ª série. Essa precisa ser uma obsessão, pois sem essas fundações sólidas não há como erguer o edifício do conhecimento. O que a experiência internacional mostra é ser perfeitamente viável - aliás, é o normal - alfabetizar crianças que não passaram pela pré-escola, já na 1ª série.

*Gustavo Ioschpe é economista
Gustavo Ioschpe*
Revista Veja - 16/03/2011


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